Via Boitempo
O "golpe dentro do
golpe" que vivemos agora é desmobilizador, silencioso e apático porque se
apoia sobretudo na vergonha dos enganados.
Christian Ingo Lenz Dunker.
O quinto trabalho de Hércules é
um dos menos conhecidos e mais enigmáticos: limpar as estrebarias de Aúgias.
Aúgias era filho de Poseidon, rei de Elis e um dos argonautas. Seu rebanho de
bois era o maior de toda a Grécia. Apesar disso, seus estábulos não eram limpos
há trinta anos. Aqui a tarefa de Hércules difere das outras porque dessa vez
não lhe é exigido força nem astúcia, e sim humanidade. Afinal, como poderia um
semideus, filho de Zeus e Alcmena, realizar uma serviço tão mundano sem se
contaminar com a sujeira acumulada?
Foi essa também a tarefa que
coube ao ministro Herman Benjamin no julgamento sobre a cassação da chapa
Dilma-Temer junto ao Tribunal Superior Eleitoral. Seu primeiro fragmento de
verdade apresenta-se quando nomeia seu adversário, o Aúgias brasileiro, atual
presidente do TSE: “Agradeço ao presidente Michel Temer…”. E, em meio a risos,
logo corrigiu o ato falho: “O outro é presidente também, mas é réu aqui”.
Uma peculiaridade da limpeza das
estrabarias de Aúgias é que, logo no começo, Aúgias redobra a dificuldade do
trabalho: “Hércules, se fizeres a tarefa em apenas um dia prometo te
recompensar com um décimo de meu rebanho mas, se fracassar, sua vida e seus
bens serão meus”. Ou seja, o herói deve enfrentar simultaneamente os mais altos
desígnios divinos, impostos por seu pai, Zeus, e os mais baixos interesses
mundanos, representados por uma fatia do butim. Isso também serve para
apresentar Aúgias, ou seja, alguém que teme perder seu reino e que pensa que o
outro só pode fazer o que faz pelos mesmos motivos que ele.
Kant dizia que uma das formas
para saber se uma ação é ética ou não consiste em sua realização para o espaço
público. Diante dos olhos dos outros, como você justificaria o que faz? Aqui,
Aúgias Mendes denuncia que só consegue ler na exposição circunstanciada de
provas e na ampliação de seu escopo motivos para “brilhar na televisão” e
“constranger colegas”. Examinar a extensão dos fatos, perseguir a verdade-real,
reconstruir a cadeia de razões ou coligir uma ordem entre os diferentes delitos
eleitorais praticados no financiamento, direto e indireto, da campanha torna-se
assim contrário à forma jurídica e mero exercício narcísico. É o que eu chamei
em outro contexto de corrupção dentro da lei.
O primeiro traço discursivo deste
tipo de corrupto é que ele denuncia-se ao atribuir ao outro, projetivamente,
quais são, na verdade os seus próprios motivos. Por exemplo: “esta ação só
existe graças a meu empenho”, como se alguém fosse “dono” de uma ação pública,
e como se ela tivesse que convir aos interesses de quem a move ou de quem por
ela zela. Tudo isso sob os aplausos de Napoleão [Nunes Maia Filho] (saído de
Santa Helena ou da Salpêtrière), sob a ira de Admar [Gonzaga Neto] (qual Lady
Macbeth tentando lavar sua própria imagem) ou da inépcia cognitiva de Tarcisio
[Vieira Neto] (com o argumento bisonho de que tais crimes são praticados por
todos os partidos). O sujeito é capaz de dizer, aberta e publicamente: “O que
eu achava importante era conhecer as entranhas desse tema, não imaginava cassar
Dilma Rousseff no TSE”. Desnecessário dizer que o que um juiz “imagina”
simplesmente não vem ao caso. Seus interesses não contam, suas expectativas do
que vai acontecer ao final da investigação são irrelevantes e jamais devem ser
argumento para qualquer tomada de posição ou voto. O que temos aqui é uma
confissão deslavada, como quem diz “comecei achando que não ia dar em nada e,
quando deu, me arrependi”. Assinatura do crime: “É muito fácil fazer o discurso
da moralidade” (como eu fiz e estou fazendo agora diante de vocês, sem
consequência alguma, nem antes e nem agora).
Hércules vagou pelo reino de
Aúgias observando carroças passando com cadáveres vítimas da pestilência do
local. Ele notou também que dois rios, o Alfeu e o Peneu, corriam mansamente
pela região. Diante disso, seu esforço consistiu em reunir os dois rios
alterando-lhes o curso de tal maneira que eles passaram a correr por entre as
estrebarias, limpando assim seus detritos em apenas um dia e sem que ele
tivesse que sujar as mãos com a tarefa.
Hércules-Benjamin reuniu rios de
delatores, cascatas de provas sobre a participação de empreiteiras e cachoeiras
de evidências sobre os truques contábeis envolvendo gráficas ou doações. Um
mesmo rio, chamado “Propinoduto” ligava a campanha eleitoral com a Petrobrás,
os partidos políticos com Caixa 1 e Caixa 2 de empresas, bem como com uma
manada de bovinos pestilentos. Isso descreve o sistema completo de corrupção de
partidos, reconstrói e traz a público o funcionamento obsceno dos intestinos da
política brasileira: leis compradas, políticos especialistas em intermediação,
venda de cargos e trocas de benesses. Tudo isso graças à decisão Aúgias-Mendes,
em abril, de “colher mais provas para examinar a fundo a participação”. O mesmo
juiz que apoiou a prorrogação do escopo das investigações, agora derroga
aceitar o resultado que ela trouxe á luz. O mesmo juiz que apoiara a limpeza,
agora torna-se o digno herdeiro de trinta anos de miséria putrefata.
Um grande homem é aquele que, no
momento certo, é capaz de agir como uma pessoa comum, deixando de lado suas
prerrogativas e agindo simplesmente como se propunha Hércules. O homem pequeno
faz o contrário, na hora de renunciar aos seus interesses, ele apega-se ainda
mais à sua divindade. É o que Temer faz ao apegar-se à presidência, ainda que
destituído de autoridade, impingindo sofrimento ao seu povo.
O que não estava previsto no
quinto trabalho de Hércules é que, graças a inovações jurídico-tecnológicas, o
rio que lavaria as estrabarias de Aúgias foi rapidamente represado, dando
origem a uma usina obstrutiva de entulho jurídico. Depois de construir Belo
Monte, não seria difícil criar a “Belo Monstro” ou a “Feio Monte”. O
procedimento construtivo é simples: dois ministros do tribunal são substituídos
por homens indicados por Temer. Assim, o réu escolhe seus juízes. “Admais”, se
formos recuar muito e pegar todos os corruptos, onde vamos parar? O convite à
leniência, dessa vez será direto ao público, acrescido de uma fábula
corroborativa: Américo Pisca-Pisca, personagem de Monteiro Lobato, quer
reformar o mundo, trocando a abóbora, que cresce rasteira, pela jabuticaba, que
dá no tronco elevado da árvore. Ainda bem que ele acorda de seu sonho de querer
“reformar o mundo” quando um pequeno fruto cai-lhe na cabeça. Textualmente:
“Deixemo-nos de reformas. Fique tudo como está, que está tudo muito bem. E
Pisca-Pisca continuou a piscar pela vida em fora, mas já sem cisma de corrigir
a natureza.”
Quer dizer, as leis jurídicas,
feitas pelos homens e cuja finalidade é a realização da justiça, são
transformadas em leis da natureza, com as quais não é bom mexer. Essa conversa
para boi dormir não pode evitar uma palavra: reformas. A mensagem carrega o
segundo traço distintivo do discurso da corrupção: “parem de sonhar com mudanças,
não percam tempo lutando contra o que é da natureza do ser humano”.
Aúgias-Mendes pratica o cinismo trivial dos que dizem: deixemos sem reformas
aqui para que as reformas ali possam continuar a acontecer sem discussão
popular. Assim, as abóboras vão cair na cabeça de aposentados e as jabuticabas
fiscais continuarão em seus troncos rendendo juros. A mensagem é clara e
chocante para um país que precisa de reformas políticas, previdenciárias,
jurídicas e fiscais, mas que ao invés de discuti-las em pormenor prefere
recriar o jus naturalismo à brazileira (com “z” mesmo).
Na mitologia grega, quando
Hércules obteve êxito improvável em seu quinto trabalho ele escuta a seguinte
resposta de Aúgias: “Os rios fizeram o trabalho, e não tu. Foi uma manobra para
tirar meu gado, uma conspiração contra meu trono. Não terás recompensa. Vais
daqui ou mandarei decapitar sua cabeça”. Um truque jurídico bem aplicado. A
forma da lei não foi cumprida. Hércules-Benjamin juntou os rios, mas não lavou
ele mesmo, com suas próprias mãos os estábulos. Sabe-se que depois que um braço
de rio muda de lugar é quase impossível retorná-lo para sua forma original. Mas
desta feita ainda não sabíamos se a conversa sobre a corrupção era para valer
ou apenas a velha aplicação seletiva da lei: “aos amigos tudo, aos inimigos, a
lei”.
O truque consistiu em realizar o
rigor da lei no impeachment de Dilma, mas usar uma medida completamente diversa
quando se trata da cassação da chapa Dilma-Temer. Dois pesos, cinco medidas.
Primeiro combinamos que o rigor da lei deve recair sob todos, sem exceção.
Pedaladas fiscais, inépcia política e má condução administrativa são elevados à
dignidade de coisa. Alguns dizem golpe, outros falam no início da purificação
moral do país.
Para Freud, o sentido de um acontecimento
traumático dependerá do evento posterior ao qual ele se liga. A série definida
pela repetição decide, a partir de seu segundo elemento, retroativamente, sua
significação. Agora tivemos o nosso segundo tempo do trauma. Aqui se decidia do
que é feita a nova lei a partir da generalização de seu princípio de aplicação.
Neste ponto preciso aparece Aúgias-Mendes legando para a história uma lição
maior de covardia diante do real, superada apenas por sua cômica recusa da
verdade.
Aúgias-Mendes, com sua retórica
da excepcionalidade, afirma que o TSE não está julgando uma “reintegração de
posse”. Há de se perguntar: por que ele não escolheu “latrocínio” ou
“apropriação indébita”? Porque de fato era uma “reintegração de posse”, a posse
do poder aos que de fato o possuem: as pessoas comuns, os eleitores, todos nós.
Ele argumenta que a presidência da república é especial. Não se deve julgá-la
como objeto de crime qualquer. Ficamos surdos diante da palavra que não cessa
de não ser pronunciada: exceção. A mesma exceção que nos fora prometida como
interditada nesta nova era de limpeza e purificação.
O terceiro traço do discurso da
corrupção dentro da lei é a denegação. Vejamos. Diz-se que “esta não é uma ação
de reparação de danos”. Mas é claro que é; dano maior à democracia e ao
processo eleitoral. Diz-se que a justiça não deve interferir em processos
políticos – faltou acrescentar: “exceto quando for de interesse de juízes
corruptos”. Digo que a justiça não deve interferir em processos políticos, mas
três frases adiante declaro-me favorável à reforma política e ao
parlamentarismo e duas frases antes convenci o auditório de que o presidente é
“especial”. Especial porque ele usa gravata de vampiro? Não, simplesmente
porque ele é ator central do processo político. E, em obsceno retorno ao
argumento projetivo e auto referencial, diz-se que um juiz não deve perseguir a
verdade real, por regressão às causas, motivos ou razões… senão todos nós
perderemos nossos cargos, “inclusive você, Rosa Weber!” Ao deixar que o
processo formal sirva de álibi para a imoralidade, encontramos em
Aúgias-Mendes-Temer o quarto traço discursivo da corrupção dentro da lei,
expresso pela máxima com a qual Freud definia a perversão e que Žižek aplicou
ao sintoma cínico da pós-modernidade: “sei muito bem disso… mas continuarei a
agir como se não soubesse”. Contradições em massa (a) “o tribunal não está ali
para resolver crises políticas”, mas (b) “o sistema precisa de estabilidade”,
ou seja, (c) o sistema político precisa de estabilidade política e o tribunal
deve contribuir para que isso ocorra. A conclusão consegue negar as duas premissas
juntas. Tudo é sem consequência quando se está abençoado pelo estado de
pós-verdade.
Segundo Pausânias, Aúgias não
aceita ser derrotado por Hércules. Ele exila o próprio filho quando este tenta
demover o pai de sua desrazão. Aúgias reúne aliados, sempre segundo a tática de
prometer uma parte do seu reino àqueles que se juntarem a ele. Sobrevém então a
guerra que arrasta várias cidades. Exaustos, decidem fazer uma trégua. Mas é aí
que Hércules não descansa e desfere o ataque final derrotando Aúgias.
Como agora, precisamos de um
esforço a mais se quisermos realmente ser republicanos. Quiçá tenha chegado o
momento no qual Hércules-Benjamin terá que se aliar aos argivos de Fachin, os
árcades de Curitiba e aos demais tebanos (e tribunos) inconformados, como
observamos na versão mitológica do mito greco-romano.
Não é mais golpe. É o golpe
dentro do golpe. O segundo tempo do trauma que confirma e decide o sentido do
primeiro. Repete-se o modelo de 1964. Primeiro apoiamos a necessidade de
reformas e mudanças contra a inépcia dos governantes. Sai Goulart, entra
Castelo Branco. Cede-se ao princípio prático da imoralidade ordinária pela qual
os fins justificam os meios, ou a crença estúpida de que contra um mal maior
tudo é legítimo. Temos então o nosso AI-5 na absolvição da chapa Dilma-Temer.
Podemos finalmente escolher: foi golpe antes ou é golpe agora?
Muitos não concordaram ou não
entenderam os termos e os meios do julgamento sobre as pedaladas fiscais. Mas
acreditaram que ele significava um novo estado de coisas, que implicava
reformular as antigas práticas erradas (eleitorais, administrativas,
judiciárias, políticas). Um voto de fé para iniciar um processo transformativo.
O “golpe dentro do golpe” que vivemos agora é desmobilizador, silencioso e
apático porque se apoia sobretudo na vergonha dos enganados. Mas é muito
difícil, depois de uma batalha campal homérica, admitir que petralhas e
coxinhas podem finalmente morrer juntos no abraço dos afogados, indo ao fundo
dos rios Alfeu e Peneu, virando mais energia nas turbinas da usina jurídica de
“Belo Monstro”.
O que fazer com o silêncio
daquele tio que bradava contra a corrupção no almoço de domingo? Como reverter
a cara cinzenta dos que vestiram a camiseta da seleção brasileira? Agora é a
hora na qual julgaremos a verdade das movimentações populares e impopulares em
torno do afastamento de Dilma. Onde estão gente como Kim Kataguri, MBL, Lobão e
quejandos quando mais precisamos de vocês? Quando veremos aquela coluna
incendiária de Arnaldo Jabor, Reinaldo Azevedo ou Diogo Mainardi? Cadê as
tantas capas de Veja, os editoriais decisivos da Folha, ou os discursos
lacrimogêneos de Janaína Pascual, dos quais tanto precisamos agora? Onde estão
os indignados deputados e senadores e demais “gente de bem” nesta santa hora,
Batman?
Permaneceremos unidos e
silenciosos, envergonhados diante do astuto rei Aúgias-Mendes-Temer, como bois
pastando em suas estrebarias, lamentando, como antes, que os políticos são uns
corruptos mesmo e que tudo tem limite? Cansados de turbulência e desordem,
vamos esperar passivamente as reformas que descerão do Olimpo para nos salvar?
Os trabalhos de Hércules eram 12. Esperemos as aves antropófagas do lago
Estínfale.
***
Christian Ingo Lenz Dunker é
psicanalista, professor Livre-Docente do Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo (USP), Analista Membro de Escola (A.M.E.) do Fórum do
Campo Lacaniano e fundador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e
Psicanálise da USP. Autor de Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica
(AnnaBlume, 2011) vencedor do prêmio Jabuti de melhor livro em Psicologia e
Psicanálise em 2012 e um dos autores da coletânea Bala Perdida: a violência
policial no Brasil e os desafios para sua superação (Boitempo, 2015). Seu livro
mais recente é Mal-estar, sofrimento e sintoma: a psicopatologia do Brasil
entre muros (Boitempo, 2015), também vencedor do prêmio Jabuti na categoria de
Psicologia e Psicanálise. Desde 2008 coordena, junto com Vladimir Safatle e
Nelson da Silva Junior, o projeto de pesquisa Patologias do Social: crítica da
razão diagnóstica em psicanálise. Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente,
às quartas.
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